sábado, 26 de junho de 2010

Comentário de Flávio Jacobsen

O retrato de Dorian e os steampunks do Jardim Social. Isso é incrível

Vezes que sou Dorian Gray, vezes seu retrato. Fato que o tempo passa. Um sorriso me sai quando sou o retrato, que envelhece enquanto o homem permanece intocável.
Sábado fui assistir à Cia. Do Abração, lá no Jardim Social, em um barracão que dá vontade de tirar férias e ficar lá dentro, semanas inteiras, lendo e pesquisando.
Grupo de processo, essas coisas. Ai que medo. Texto coletivo, ai meu deus. Coisas que temo. Infantil, ai meu deus de novo. Coisa séria. Fiquei pensando que: será que eles fazem aqueles exercícios do tipo “agora sou uma árvore”? Já participei de tudo isso nos tempos de Lua Nova, do mestre Laerte Ortega. O teatro para a vida, alguns. A vida para o teatro, outros. Fato que ninguém sai o mesmo depois de um processo.
Comigo tudo se deu em um momento difícil da vida, como se ter 18 anos já não fosse por si só uma coisa de dar medo. As cobranças, atitude, postura política, descobertas estéticas, morais, sexuais. No processo que passei, tendo como pano de fundo um espetáculo simplesmente genial em que uma noite de circo fazia vir abaixo toda uma lona, em metáfora que faz referência às estruturas que temos todos, por nos sustentar. Todo circo é sustentado por apenas uma pilastra. Ela vindo abaixo, tudo cai. “O mundo é um ovo. Quem quiser nascer, tem que destruir um mundo” (Hermann Hesse). Naquele espetáculo, Padu, carrasco e dono do circo, vê-se ante um motim, em que todos os artistas em que pisava e humilhava se revoltam, numa noite de espetáculo, destruindo tudo. A lição que fica é que cada um sai dali montando seu próprio circo, adiante. Outra coisa curiosa é que tudo isso aconteceu também dentro do grupo, imitando a história que encenávamos. Arte que imita a vida, e vice versa. Segui meu caminho e estou aqui olhando para meu próprio retrato que envelhece, feito um Dorian Gray.
Enfim, já fiz processo, sei como é. O único problema que tenho com este tipo de grupo é que via de regra o “produto” final, o resultado do processo, ou seja, o espetáculo, é uma grande merda.
Não para minha surpresa, dado que sou muito chegado de algumas pessoas ligadas ao Abração, o espetáculo de sábado foi maravilhoso.
Sobrevoar, a peça, texto de criação coletiva (ai meu deus), trata da vida de Alberto Santos Dumont, personagem pelo qual sempre tive grande fascínio. O ponto de vista é o sonho. O alvo, a criança. Inventor, o jovem Alberto “do mundo” sonhava desde novo realizar o velho sonho (quantas vezes terei de escrever esta palavra?) do homem voar. O espetáculo, para quem não conhece a vida do pai da aviação, serve de fato apenas às crianças. O que não restringe, ao contrário, diverte. A montagem é fascinante, com música primorosa, cenário inteligente e atuações de arrepiar.
Já para quem como eu conhece a vida e a história de Santos Dumont, o fascínio se duplica, algo que me levou às lágrimas. A bela passagem em que escreve a carta para a mãe. As decepções com os seguidos fracassos de suas tentativas. O chapeu como elemento de troca muito dinâmico (o chapeu foi também um acidente, lembrando), entre outros “truques” de montagem que são muito bacanas. Me tocou muito especialmente a magnífica metáfora com o personagem da lagarta. Algo como o gato de Alice.

Pra mim, a lagarta soa como o próprio Brasil. Gigante, imaturo, mas que tem por destino o inevitável, tornar-se borboleta e alçar voo. Ninguém segura este país. Nada pode parar o inevitável. Além, ainda vejo na lagarta a figura da princesa Isabel, exilada em França, num belo palácio, em cujos jardins Dumont caiu com um de seus inventos. Lá foi prontamente atendido, trocou sua gravata vermelha pra não ofender à princesa com sua preferência republicana (os homens daquela época tratavam as mulheres bem, isso é incrível). Assim fez nascer grande amizade e recebeu uma medalhinha de são Bento como presente e amuleto de proteção.
A peça tem uma estética steampunk em seu vestuário, o que torna tudo muito mais divertido e afeito ao período retratado. Aqueles homens incríveis e suas máquinas maravilhosas. Tente imaginar o período. A belle epoque, a era vitoriana, o fin de siécle, chamem como quiser. Aquele bando de loucos, homens que inventaram o mundo em que vivemos hoje. Trens, lâmpadas, carros, navios a vapor, relógios de pulso e, por que não, uma máquina de voar. Nada será como antes. Incrível.
O enredo dá como destino final o espaço sideral (salvo engano, Dumont morreu no mesmo dia em que décadas depois o homem pisaria a lua), deixando no ar (no ar!) a ideia de que nada é impossível. Tudo que hoje é real um dia já foi sonho. Deixa pra lá. A esta altura meu retrato de Dorian já escorria em lágrimas.
Saímos um pouco depois, com a moça do elenco a quem tenho apreço imensurável, e o amigo/irmão que me acompanhava, e ainda uns amigos dela. Agradável é pouco para descrever o momento e as conversas divertidas. Em tempo: a moça está pronta. Ela sabe.
Na mesma noite, ainda, fui a uma festa me despedir de uma amiga querida que pegaria um, vejam só, veículo mais pesado que o ar, rumo ao outro lado do Atlântico, dias depois. Isso é mesmo incrível.
...
Postado por Flávio Jacobsen às 14:21 no blogg: quebraderafc.blogspot.com

Um comentário:

  1. Deixa o sonho te levar...
    As imagens deste espetáculo, bem como toda sua dramaturgia, nos encanta já na primeira cena. No primeiro piscar dos olhos encantados com as cores desse vôo... E como não ficar assim?
    Um convite ao portal dos sonhos e nesta "terra" mágica do teatro para crianças de todas as idades logo encontramos toda essência necessária para o ritual acontecer.
    Que ritual é esse? O de compartilhar arte, emoção, magia, poesia, sonhos em verso e prosa que a Cia. do Abração nos alimenta em SOBREVOAR.
    E que delícia de "comida" essa de teatro, que garante longas lágrimas da mais pura emoção, sentimentos descritos em cada nota musical cantada e "encantada" pelos jovens atores. O desenho de tudo, de cada detalhe, uma caixa de surpresas inimaginável brota da janela do menino e logo está lá, ela, amarela, uma lua tocando os nossos corações.
    Um dia, ouvi da Letícia, diretora deste espetáculo, que jamais devemos abandonar os nossos sonhos pelo caminho, devemos segui-lo, acordá-lo e fazê-lo real.
    Esta pequena peça, pórém "monstruosa" em seu ensinamento, em sua pedagogia, esclarece de forma colorida, dinâmica, imaginária e real ao mesmo tempo, que os sonhos estão aí, dançando feito o vento, alçando os vôos mais incríveis, desenhando um caminho que só quem não os abandona pode torná-lo tão real, doce, sincero, mágico, presente, vital...
    Sonhamos porque estamos vivos, sonhamos porque somos crianças, porque somos um pouco "domundo", porque nos alimentamos desta arte tão singela, sensível chamada TEATRO.
    E depois de tantas palmas fica a vontade de fazer parte deste universo, de continuar ali, deitado entre as nuvens do cenário, fazendo de conta que o dia tem muitas horas pra brincar e descobrir... Eu quero mais sobrevoar e sobreviver para ver meus sonhos acontecer!
    (rima boa hein?)
    Para o abração o meu melhor e mais quentinho abraço. A todos deste espetáculo um grande beijo de quem se fartou deste bom alimento.
    E que ainda venham tantas outras histórias e sonhos com muito amor, gratidão e respeito pela arte e pelas crianças.

    Guga Cidral
    Artista educador

    ResponderExcluir

"O sonhador tem sempre uma nuvem a transformar. A nuvem nos ajuda a sonhar a transformação."

Gaston Bachelard